domingo, 8 de abril de 2012
Gran Torino
Segue-se, na fila, um casal americano.
"I'm checkin´ in. Ziegler"
O sotaque parece saido de qualquer série televisiva. Ela é baixa, cheia. Ele não é muito mais alto, traz um boné na cabeça e uma camisola antiga de uma equipa de baseball. Terão por volta dos seus 50 anos.
Carrego no botão para os Checkins. São 09:00 da manhã, caramba. Se já houver quartos disponiveis é uma sorte. É sábado, ontem trabalhei 9 horas, acabei à meia noite, directo para o quarto 635 para dormir. 5 horas de sono em cama de rei, e acordei cheio de energia. Não sei de onde veio, mas sinto que o trabalho até parece ainda mais fácil.
Clico na reserva. Enquanto vejo algumas indicações acerca da mesma, meto conversa:
"How was your flight?", pergunto, com um sorriso.
Desenvolve-se a conversa, própria de duas culturas faladoras. Acerca do tempo, de Amesterdão, coisas muitas em poucos segundos.
"Mr Ziegler, I need to see if we have rooms available right now. Yesterday we had full house, so probably the house keeping team is still cleaning rooms".
"Oh, I understand. No problem!"
Pego no telefone, ligo para Sabitri, a coordenadora da equipa de limpezas. Um simples telefonema. "Yes?", diz-me ela. "Sabitri, it's André, reception. Do you got something for me? Please tell me you do!", pergunto-lhe, numa voz sorridente que alivie pressão. "Let me see", diz-me, no seu sotaque meio indiano, "yes, I do. Room number (...)". Anoto no bloco de notas, não sem antes agradecer: "Thank you so much, Sabitri. That's exactly why I like to work with you! Please, give your team a big Good morning for me!", digo, entre gargalhadas minhas e dela. Do outro lado houve-se um sorriso de quem tambem gosta de ouvir elogios pela manha.
Mudo no sistema o quarto pretendido. E na reserva de Mr Ziegler atribuo o novo quarto. Transmito-lhe a novidade.
"Wonderful! Thank you very much, André! By the way, I have several questions about trains and transportation. Is it possible to come back later, so you can help me?"
E porque não? Claro que sim! Como ainda disse a uma hóspede ontem, em jeito de brincadeira: "O meu trabalho é ajudar-lhe, e nada mais."
Ele agradece, profundamente. Noto-lhe sinceridade. Não é só boa educação, e isso faz a diferença.
Faço a chave do quarto, dou-lhe, e forneço as indicações do costume. No final, acrescento:
"You arrived so early today, please feel free to go to our breakfast area and have a good and strong Continental Breakfast", sugiro, terminando num tom de quem desafia o desportista. Sabia que a minha chefe não se iria importar (palavras da própria).
A reacção é de completa surpresa.
"My God, how can you do it? Such sympathy, and we are in the morning!! In America, we do like this:"
Extende-me a mão, fecha o punho. Faço o mesmo, "chocamos" os punhos, ao jeito MTV americano.
Rio-me: Assim é tudo mais fácil.
"You know, Mr Ziegler, Imagine me standing here for 8 hours with a bad face. It simply wouldn't work!"
Mas, Mr Ziegler, agora que ninguem nos ouve, deixe que lhe diga, nao é só isto. Não são só as oito horas de trabalho. Gosto de pensar que é uma maneira de ser. Se fosse gerente de um hotel, após este tempo, o único lema que daria à minha equipa seria: "Trata cada hóspede como se fosse o único que temos". Não deites a mão à cabeça, caro amigo que lês isto, a pensar "que foleirada!". Eu acredito mesmo que isto faz a diferença. Na noite anterior apareceu-me uma rapariga, que segundo ela, "preparara sozinha a viagem dos amigos". Uma confusão na reserva mais as politicas do hotel pareciam quase impossivel satisfazer os requisitos que ela pretendia. Começou a ficar nervosa, mas não perdeu a calma. "Só preciso que me ajude, por favor". Sorri-lhe, e então sim, disse: "O meu trabalho é ajudar, nada mais. Acredite, não estou aqui para ver televisão." Suspirou com calma. Entre telefonemas para a gerência, ideias para contornar o problema, e 10 minutos depois o problema estava resolvido. "Se nao estivesse aqui tantas pessoas na recepção, eu acho que lhe dava um beijo", disse-me, baixo, no seu sotaque inglês. Foi-se embora com um sorriso. Aquele mesmo que eu tinha.
Quando um hóspede aparece à recepção, parece que tenho a imagem do Padre Filipe na cabeça. Quem o conhecia, sabia bem o sorriso acolhedor com que ele recebia as pessoas. Trata-se da maneira de reagir, o conforto em que pomos as pessoas. Não vou ser recepcionista a minha vida toda, espero, portanto vejo este trabalho como uma experiência. Nem sempre tudo corre bem, e isto tambem é necessário saber-se que acontece. Mas o segredo para se transmitir um sorriso é ter-se um tambem.
Entretanto, o casal Ziegler desaparece, escondendo-se na area do pequeno almoço. Mais hóspedes na recepção fazem-me prever uma manhã agitada.
O tempo passa, a recepção finalmente fica livre. Digo ao meu colega que vou à cozinha comer alguma coisa.
Passo pela area do pequeno almoço. Está apinhada de gente, como nunca vi. E no meu caminho para a cozinha, deparo-me novamente com Mr Ziegler.
"André, one more thing.", diz-me, no seu sotaque americano. "I've brought a laptop with me. Do you guys have Wifi?"
"Yes, we do, Mr Ziegler. It's free. If you need help to connect it, please bring your laptop to the reception, and I help you with it."
Outra vez, ele inclina a cabeça ligeiramente para trás.
"Really, how can you do it? How can you do it?", diz-me, entre um sorriso. "I'll meet you after my breakfast"
Há aqueles hóspedes que, por histórias, frases ou caras, nunca esquecemos. Mr Ziegler é um deles.
Entro na cozinha. Hector está a preparar alguma coisa, Don idem, Omar está a limpar os pratos, e Alicja a tirar o pão do forno. Outra vez, na simples forma, sorri-se. Pergunta-se que tal está a correr o dia. Se a minha manhã está ocupada, a deles está ainda mais. Mas pela primeira vez, estranhemente, sinto o espirito de equipa. Que eu nao seja o único, espero.
Volto para a recepção. Mr Ziegler volta passados largos minutos.
"It seems that I can't connect to the Wifi", diz-me, enquanto me o pc em cima da recepção. Olho para os caracteres no teclado. Vejo letras estranhas que preenchem o teclado, para alem das "normais", e tenho um flash back.
Já vi estes caracteres algures.
Já comprendo porque é que não conseguia perceber nada do que o casal Ziegler falava entre si.
...Sachsenhausen...
Mr Ziegler distrai-se um bocado, fala com a mulher enquanto rapidamente procuro resolver o problema, que em si não é nada de mais. Em 3 passos, o computador já está a ligado à net. Peço a Mr Ziegler para confirmar.
"Let me see", diz-me. Faz uma suspensão. Abre a internet, e lá parece o site pretendido. Faz o seu sorriso de satisfação.
"Amazing! Here, please, take this. It's not much, but..."
Do seu bolso tira 5 dólares. Para ele poder não ser muito, mas acho que ainda fiquei uns segundos a segurar a nota, deixando escapar em voz alta: "My first dollars!"
Obrigado, Mr. Ziegler. Creio que não se deve ter apercebido, mas ajudou-me muito mais que eu a si. Deu-me mais uma história de vida, que aqui escrevo. Deu-me energia para o resto da manhã, e deu-me a certeza de que, não sendo perfeito para a função a desempenhar, pelo menos vai funcionando.
5 dólares. Ainda menos que 5 euros, mas por toda a ironia, tem muito mais valor. Parece uma qualquer nota rara que nunca toquei.
Um dia, quando me perguntarem como foi trabalhar num hotel, recordarei estas pequenas histórias.
Pequenas histórias que preenchem.
Escrito
Pedro de Arimateia
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(:
ResponderEliminarestou de lágrimas nos olhos.
ResponderEliminartão simples.
estás a ver porque é que digo que és uma inspiração nas pequenas coisas?